Flor onde a luz é pouca: um bate papo sobre leitura popular da
Bíblia com o teólogo Milton Schwantes
(...) “Você já viu
a violetinha em flor lá no cantinho da cozinha?" Eis o boato que corre. E
cada qual vai lá apreciar seu encanto. “E, olha, lá meio escondido, mais dois
botõezinhos!". “Ah, que lindo!" E lá vamos à cozinha, a ver as
florzinhas. Até parece peregrinação. E quem vem de visita é, em
seguida, conduzido à florzinha, no cantinho da cozinha. Deu-me a
idéia de que aí temos um Evangelho. Vem do cantinho. Lá no meio de um
escuro lugar se nos anuncia uma boa-nova: há flor até onde a luz é pouca
(...). Texto de Milton Schwantes, para o devocionário 365
Dias com Deus, Editora Cedro).
Um dos maiores
biblistas do país, com título de doutorado na Alemanha e obras
reconhecidas internacionalmente, o teólogo Milton Schwantes escolheu
o caminho da simplicidade. Fala da Bíblia como quem fala de um amigo
íntimo, gente de casa, diante dequem já não existe cerimônia ou
formalidade. Nada mais natural. Para Schwantes, pastor da Igreja
Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), a leitura da
Bíblia é transformadora quando nasce da vida do povo, do cotidiano de lutas
e da esperança que se renova diariamente. Ele é uma das referências no Brasil e
no exterior em “leitura popular da Bíblia”, tema sobre o qual falou à revista Signos de Vida
(CLAI, n. 56, Julio 2010).
Descreva brevemente
sua trajetória acadêmica. Qual foi o tema de sua tese dedoutorado
em Antigo Testamento?
“O direito dos
pobres no Antigo Testamento” foi o tema do doutorado que eu levei para a
Alemanha, para a Universidade de Heidelberg. Apresentei o tema ao meu
orientador, o professor Hans Walter Wolff, que, a princípio, não gostou muito
da ideia. Era algo muito novo, a Teologia da Libertação ainda estava nascendo
na América Latina. Hoje, meu trabalho é muito mais usado lá do que foi na
época. Foi publicado em alemão (Das Rechtder Armen) e em português deve
sair ainda este ano. Estou trabalhando no texto.
Minha formação teológica começou
em São Leopoldo, Rio Grande do Sul. No curso pré-teológico, além das
disciplinas do Ensino Médio, a gente aprendia latim e grego. Em 1970, concluí o
curso de teologia pela EST (Escola Superior de Teologia).
Na Alemanha não havia mestrado, fui direto para o doutorado. Voltei da Alemanha
em 1974 e a carreira acadêmica já era prevista; a Igreja não tinha muitos
doutores naquela época. Mas antes de entrarem na sala de aula,
primeiro os doutores tinham que ir para a paróquia! Fui para Cunha Porã, em
Santa Catarina, onde fiquei até 1978, quando, então, comecei a dar aulas
na Faculdadede Teologia em São Leopoldo. Lecionei em São Leopoldo até
julho de 1987. Em 1988, comecei a dar aulas na Universidade Metodista de São
Paulo, na graduação em Teologia e na pós em Ciências da Religião, além de exercer
o pastorado em Guarulhos. Sempre fui pastor. Apenas recentemente deixei o
trabalho da Igreja porque a saúde não permite mais (em 2002, o
professor Schwantes sofreu uma cirurgia que deixou algumas
sequelas). Em 2002, recebi um doutorado (Honoris Causa) pela Universidade de Marburg,
Alemanha. Em 2008, o Instituto de Estudos Superiores, ITESP, que é da
Igreja Católica, também me concedeu o título de Doutor Honoris Causa;
a iniciativa partiu dos estudantes.
Como despertou
em você a leitura popular da Bíblia? Quais são as motivações que o
impulsionaram nesta linha de pesquisa?
Estava no segundo
ou terceiro ano de teologia quando li Richard Shaull (Pastor
presbiteriano, o missionário norte-americano Richard Shaull (1920-2002) é considerado
um dos precursores da Teologia da Libertação. Missionário na América Latina
entre as décadasde 40 e 50, Richard Shaull deu aulas o Brasil entre
1952 e 1962.) . Realizei um seminário sobre Shaull em 1968. Ele formulou uma
“teologia da revolução”, a Bíblia presente nas transformações sociais. Não era
um apelo revolucionário, mas a compreensão da responsabilidade cristã
nesse contexto de mudanças. Toda a minha geração foi influenciada por
ele. Foi do Richard Shaull que nasceu o tema do doutorado. A Teologia da
Libertação estava surgindo na América espanhola, mas as informações demoravam
a chegar. Li uma tradução em alemão do Gustavo Gutierrez (O padre peruano
Gustavo Gutiérrez (1928) é autor do livro “A Teologia da Libertação”, escrito
após sua participação na Conferência Episcopal de Medellín, de 1968.),
quando estava em Heidelberg.
A leitura popular
da Bíblia é um pouco mais tardia. Nos anos 70 Frei Carlos Mesters aderiu à
Teologia da Libertação quando ainda fazia uma leitura da Bíblia antiga, não
popular, de um jeito dogmático. Foi do contato com o pobre – não mais
como objeto, mas como sujeito do estudo da Bíblia – que nasceu essa nova
forma de ler e interpretar a Palavra de Deus. Em 1979, Frei
Carlos fundou o Centro de Estudos Bíblicos, o CEBI, com o
projeto de estudar “Bíblia e Vida”. Em 1975, voltando da Europa, eu
citei Frei Carlos em um trabalho, mas ainda não o conhecia pessoalmente.
Conheci o CEBI e Frei Carlos Mesters pessoalmente em 1979 e comecei a trabalhar
com leitura bíblica popular. Trabalhei sempre para criar um grupo bíblico para
servir à Igreja.
Qual é o objetivo da leitura popular da Bíblia? Como ela acontece na
comunidade?
Para chegar a uma leitura
popular da Bíblia as pessoas entram com a vida. Quando saímos do método de ensino
tradicional as pessoas vão tomando a palavra e se ensinam. É muito bonito. É
algo muito impactante sempre. Porque você sabe o começo da reunião bíblica, mas
nunca sabe o fim. Quando comecei em Guarulhos com círculo bíblico, eu achava
que tinha que escolher o tema. Propus o Evangelho de Mateus, que é
tão lindo, mas falei sozinho... Então, eu disse: “Vamos escolher um que
gostamos”. E o povo respondeu rápido: “Apocalipse!” Achei muito difícil e
escolhi outro Evangelho... Prometi Apocalipse para um outro estudo, no futuro.
O povo é de uma paciência maravilhosa! Então, quando começamos com
Apocalipse eu já não tinha mais a palavra, eram eles que falavam. Diziam: “É
muito difícil, pastor, mas eu acho que é assim...”.
Em Guarulhos, quem
pediu o estudo bíblico foi a própria igreja. Eu respondi: “Quem fizer o estudo
vai ter que dar estudo também”. Tem muita gente que estuda a Bíblia só para
encher a pança. São consumidores da Bíblia. Queria gente andando na rua,
vivendo a Bíblia. Nas casas, os assessores bíblicos iam de dupla: um
cantava e o outro lia a Bíblia. Às vezes eles diziam: “Ainda não, pastor, a
gente tem que cantar melhor”. Então fizemos um cancioneiro e todos ensaiaram.
Todo mundo tinha que estar apto. No começo eles ficavam muito preocupados. “Mas
e se eles fizerem perguntas, pastor?” E eu respondia: “Não precisa responder, deixa
a turma falar”.
Você acompanhava
todos os grupos de estudo bíblico nas casas, dava algum tipo demonitoria?
Não, eu participava de um
grupo também, como todos os demais. Tinha a mesma experiência deles.
Os cursos duravam dois meses. No final, fazíamos um encerramento todos juntos,
com um culto.
Então os cursos não
ocorriam semanalmente, como nas Escolas Dominicais?
Estudo Bíblico toda semana não dá, a turma cansa. Ou, então, frequenta por costume quando, na verdade, o objetivo é fazer missão. Os estudos são limitados no tempo e no tema. Por exemplo, estudávamos Lucas 1 e 2 antes do Natal.
Estudo Bíblico toda semana não dá, a turma cansa. Ou, então, frequenta por costume quando, na verdade, o objetivo é fazer missão. Os estudos são limitados no tempo e no tema. Por exemplo, estudávamos Lucas 1 e 2 antes do Natal.
Mas o grupo não se
dispersava após o término do estudo?
Que nada, na outra
sessão estavam lá de novo, para estudar, cantar, para falar com o
vizinho, comer... Chegamos a ter 19 grupos ao mesmo tempo.
Que desafios e que benefícios recebem as comunidades que se deixam
motivar pela leitura popular da Bíblia?
Quem estuda a
Bíblia tem que lidar com bazar, criança faminta, favelas, visitas... se não
fizer, este trabalho não adianta. A leitura popular da Bíblia tem que estar
inserida num projeto de igreja. Minha igreja fazia bazares e o
grupo de estudo bíblico também tinha que estar envolvido no trabalho,
recolhendo roupas para vender depois a dez centavos...
O estudo popular da
Bíblia muda a comunidade rapidamente. Não pelo estabelecimento deuma
moral, mas de uma alegria. A igreja de Guarulhos, que era
reacionária e conservadora, agora é toda de esquerda. Fiz lá um
trabalho no campo político. Por exemplo, realizamos na igreja um encontro sobre
socialismo em Cuba e levei uma pessoa do Consulado para falar. Também levei um
historiador, que falou da história de Guarulhos. A comunidade tem
que saber quem ela é e como está.
Fazíamos encontros
semestrais sobre temas específicos. Uma vez discutimos se Jesus havia sido
sacrificado ou assassinado. Foi uma “pauleira”! Mas eu disse: “Aqui todo mundo
fala o que pensa”. Os alemães foram embora (risos). Já a igreja cresceu: de 50,
foi para uns 700 membros.
Esta leitura popular da Bíblia tem cores confessionais? Ela pode ser
um fator de unidadedos cristãos?
O grupo se reúne
nas casas, cantando e estudando a Bíblia. O estudo nas casas é aberto, todo mundo
participa, não existe cor confessional. Numa ocasião, estudando Êxodo 3, fomos
até duas horas conversando. As famílias vieram e se sentaram conosco dizendo:
“Vocês estão loucos, não voltam mais para casa?”. Sentaram e ficaram. Estávamos
estudando quem é Deus. Foi demais de lindo. Êxodo 3 é um
dos textos mais lindos sobreDeus. Fala sobre Deus e as plantas, fala sobre
libertação. Ninguém esquece quem é Deusdepois de uma experiência
assim.
A leitura bíblica
comunitária é o grande evento na América Latina e tem a ver com o mundo
católico. Isso é assim não porque o papa é bom ou por causa dos padres, pois
eles não sabem muito da Bíblia, lamentavelmente. É por causa dos leigos e das
mulheres. A leitura popular é um fenômeno leigo católico. Por isso o movimento
bíblico continua forte, e está se renovando porque acontece em setores não
controlados das igrejas. O povo não depende dos padres para ler a Bíblia.
Em contrapartida, o mundo protestante tem problema com a leitura bíblica. A
maioria dos pastores também não conhece Bíblia. Mas a presença do pastor é
muito grande no mundo protestante; nosso grupo acaba repetindo o que os
pastores dizem. Então, temos muito a aprender com os católicos. A leitura da
Bíblia é ecumênica.
Como você avalia o interesse das comunidades pelo estudo da Bíblia?
Na América Latina
fala-se muito que a Teologia da Libertação terminou. Mas não a leitura popular
da Bíblia, que continua em pleno vigor. A organização cristã Visão Mundial
convidou-me para visitar Recife. No Brasil, a Visão Mundial era extremamente
conservadora há 30 anos. Mas hoje ela é uma nova instituição no Brasil. Em
Recife, reuniram-se pessoas devários grupos da Visão Mundial no país. Um
metodista presidia; vários eram mais ou menos pentecostais. O resultado foi uma
grande surpresa: era como se eu estivesse nos anos 70, os tempos do começo
da Teologia da Libertação. Com as falhas dos anos 70, mas com as alegrias
também. Naquele lugar, havia jovens, leigos e leigas, pastores e pastoras num
encontro de releitura da Bíblia. Fiquei muito impressionado porque
essas pessoas não conhecem a leitura bíblica latino-americana. Então, o que
estava acontecendo era um novo acesso à Bíblia sem mediação da Teologia da
Libertação, mas que era Teologia da Libertação. Uma leitura pentecostal e leiga,
com toda a força da leitura popular da Bíblia.
Também estive em
Vitória, em um seminário particular, não vinculado a nenhuma igreja e com
cerca de mil alunos, a maioria pentecostais. Falei lá da mesma
maneira que falo na Universidade Metodista e nos entendemos muito bem.
Também visitei o CEBI em Vitória. O grupo tem mais de 50 pessoas,
integrantes de igrejas históricas e pentecostais. É um grupo que as
igrejas não controlam e eles trabalham muito na assessoria bíblica.
Quais são as
ênfases em suas aulas quando você está diante de uma turma deestudantes de teologia?
É preciso acentuar
as coisas dos dias de hoje. O comentário político também é
importante. Pergunto aos meus alunos: “Vocês ajudam os pobres na igreja de vocês?
Quem trabalha com os pobres?” Isso é sério! A Bíblia é uma ajuda para chegar ao
pobre. Eu tendo a diminuir a Bíblia e aumentar a vida. Cada pessoa precisa
sentir que faz parte da Bíblia. Leio com eles Marcos 4, por exemplo. Lá existem
várias parábolas. A parábola do lavrador e da semente, por exemplo, são duas
parábolas masculinas. E os homens se sentem seguros porque estão na Bíblia. Mas
também mostro a parábola do grão de mostarda, que é uma hortaliça. A
mostarda não está na roça, está na horta, que fica sempre junto à casa. O que está
junto à casa é atividade da mulher. A mostarda é uma plantinha para os
pássaros, um abrigo. Há uma conceituação feminina por trás desta parábola.
Percebê-la quebra o fundamentalismo porque se percebe que cada pessoa tem parte
na Bíblia: homem, mulher, jovem, idoso. A verdade não fica num só lugar.
Você percebe um
interesse crescente pela leitura popular por parte dos estudantes deteologia?
E na pós-graduação?
Sem dúvida! Há
muito interesse, sobretudo entre os pentecostais. O povo gosta decelebração
carismática, eufórica e também quer estudar. Nunca vi ninguém contra a leitura
popular da Bíblia, eles querem aprender. Na graduação basta trabalhar mais
sistematicamente. Na pós-graduação da Universidade Metodista tenho uma
classe de 25 alunos, dos quais existe apenas uma pastora metodista. O
restante da classe é quase todo pentecostal.
Em geral, o aluno
não conhece a Teologia da Libertação porque o livro é muito caro. Estudante de Teologia
é pobre. Vai ler o que o pastor empresta. Livro do Boff ele não consegue
comprar. Se os alunos tivessem acesso a livros, eles leriam. Por isso edito os
meus livros e vendo a cinco e sete reais. Não escrevo para ganhar dinheiro. Na
verdadeestou investindo o dinheiro da minha vida editando livros. Para vender
por cinco reais, tenho que fazer três mil exemplares, que me custam dez
mil reais. Tenho que vender um semestre, para fazer mais dez mil. As
editoras esquecem que estudante de teologia é pobre. Vendi livros na
Europa por dois euros e tive lucro acima de 1 euro por livro.
Você está
escrevendo um livro nestes dias? Qual é o seu último livro publicado e do que
trata?
Estou editando
Oséias agora e Êxodo 1 a 6. Vou publicar quanto tiver dinheiro. Meu último
livro publicado é Sabedoria e Provérbios, que vendo a sete reais. Ele traz
comentários sobre capítulos inteiros de Provérbios, um livro que
enfoca a vida do dia a dia. Também lancei recentemente Sofrimento e esperança
no exílio e História de Israel – Local e origens, os dois a sete
reais. E existe ainda o Breve História de Israel a cinco reais. Quem
estiver interessado pode escrever ao meu e-mail (milton.schwantes@metodista.br).
As despesas do correio são por minha conta.
Quais dos seus
livros já foram publicados em espanhol e onde podem ser adquiridos?
Tenho quatro livros
em espanhol. Editei Gênesis 1 a 11 no Peru; História de Israel e
Exílio no Equador; Amós em Costa Rica; Ageu em Buenos Aires. Mas preciso
reeditá-los. Os livros que não forem reeditados vão para a internet. Ainda não
tenho site, mas já existe uma pessoa criando um para mim. A idéia é publicar
todos os ensaios; minhas filhas estão ajudando.
Você continua
participando do movimento latino-americano de Leitura Popular da
Bíblia?
Com algumas
limitações, mas continuo em contato com a Rede Ecumênica Bíblica Latino-americana
e Caribenha, REBILAC. O site é www.rebilac.net. É uma instituição informal, que
se reúne periodicamente e está na mão de leigos. Devo ir a Lima,
Peru, em novembro de2010, quando haverá o encontro continental. Participo
também da Revista de Interpretação Bíblica Latino-americana,
RIBLA, que ajudei a criar nos anos 90. Ela também tem um site: www.ribla.org.
E a Bibliografia
Bíblica Latino-Americana? Como ela está organizada e quais são os
objetivos deste projeto?
A Bibliografia
Bíblica Latino-Americana começou em 1988, como parte do Programa de Pós-Graduação
em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo.
O projeto está ligado à área de Literatura e Religião no Mundo
Bíblico. Publicamos oito volumes com as publicações bíblicas referentes a 1988
até 1995 e agora todos os dados estão na Internet
(http://www.metodista.br/biblica).
Ela está um pouco
atrasada; há muito material. Não pensei que houvesse tanto material na América
Latina. É necessário ler e fazer uma síntese. Pois a bibliografia não apenas
indica o material bíblico produzido na América Latina e Caribe como orienta
quanto ao conteúdo, trazendo resumos de cada ensaio e livro. Temos
uma pessoa contratada só para digitar e publicar na internet. A Bibliografia
traz todos os livros latino-americanos. Não existe outra iniciativa dessa
em lugar nenhum do Brasil. Ela será importante só daqui a 10, 15 anos.
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