Quem foi Milton Schwantes?
Na tese de doutoramento, Milton
centrou suas atenções no grupo dos socialmente fracos do antigo Israel.
Verificou que os pobres não são grupo periférico, mas que são praticamente
idênticos ao povo de Deus. Deus é um Deus que se volta aos que sofrem.
Milton Schwantes nasceu a 26 de
abril de 1946, às 8h30min, no Hospital N. S. do Rosário, na Vila de Tapera, no
município de Carazinho/RS. O pai, Delfino Schwantes, e a mãe, Eugênia, nascida
Graeff, residiam, então, em Lagoa dos Três Cantos, também pertencente ao
município de Carazinho. Era o quarto filho do casal de agricultores. Milton
Schwantes recebeu o Santo Batismo a 26 de maio de 1946, em Lagoa dos Três
Cantos. Em 1951, Delfino Schwantes faleceu em conseqüência de cirurgia
malsucedida.
Quando da morte do pai, os irmãos
Norberto e Édio estudavam em São Leopoldo, no Instituto Pré-Teológico, curso de
humanidades da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), que
preparava para o futuro estudo teológico. Os dois irmãos tornar-se-iam, assim
como mais tarde Milton, pastores. Outro irmão, Arlindo, seguiria a carreira do
magistério, estudando na Escola Normal Evangélica, igualmente localizada em São
Leopoldo.
Viúva, Dona Eugênia migrou com
Milton para Nova Petrópolis. Os Schwantes haviam sido imigrantes alemães que,
originalmente, se fixaram em Nova Petrópolis. Eugênia era natural do Vale do
Taquari. Passado meio ano, mãe e filho rumaram para São Leopoldo. Trabalhando
na cozinha do Instituto Pré-Teológico (IPT), Dona Eugênia conseguiu dar
formação escolar digna aos quatro filhos. Pessoa de grande piedade, servia
também como exemplo de fé para os muitos estudantes que se deslocavam de todas
as partes do Brasil para estudar no Morro do Espelho. Até a velhice, sua
piedade se fez presente na vida da comunidade luterana de São Leopoldo, que
soube mirar-se nela também quando da morte de seu filho mais velho, Norberto,
morto como deputado constituinte. Com as mudanças ocorridas, Milton estudou ano
e meio em Lagoa dos Três Cantos, meio ano em Nova Petrópolis. O restante do
“curso primário”, como eram designados então os cinco primeiros anos de estudo
escolar, foi completado no Instituto Rio Branco, em São Leopoldo, educandário
da comunidade luterana local.
Nos próximos sete anos, os
estudos teriam prosseguimento no IPT. Quase que ao natural, preparava-se o
caminho para a formação teológica. A escola IPT fornecia sólida formação
humanística, na qual as línguas recebiam destaque: latim, grego, português,
alemão e inglês. Aqui, os clássicos puderam ser lidos, de César a Cícero,
passando por Tácito e por Ovídio, de Xenofonte a Platão, de Camões a Érico
Veríssimo, passando por Alexandre Herculano, Júlio Diniz e Ferreira de Castro,
Machado de Assis e Graciliano Ramos, de Walther von der Vogelweide a Bertolt
Brecht e Robert Musil, passando por Schiller, Goethe e Heine, de Shakespeare a
Thornton Wilder. História e geografia, as ciências físicas e biológicas e a
matemática completavam o quadro. O canto, instrumentos musicais e o teatro
tinham espaço garantido. No mês de julho, “excursões artísticas”, durante as
quais comunidades luteranas do Brasil meridional e do Espírito Santo eram
visitadas, permitiam que os talentos do IPT se expressassem. Neste ambiente,
aos poucos, Milton foi se destacando como estudante, mesmo que tenha dito ter
passado “por várias dificuldades, a maior das quais sem dúvida a expressão na
língua alemã”, o que não era verdade. Verdade é que participava de geração de
descendentes de imigrantes alemães no pós-guerra, os quais mais do que nunca
queriam ser aceitos como brasileiros e inserir-se na então propalada “realidade
brasileira”. Bom desportista, Milton também destacou-se como líder estudantil,
participando da organização do Grêmio Estudantil do IPT (GEIPT), do qual também
foi presidente, em tempos difíceis, pois no penúltimo ano de estudos no IPT
acontecera o golpe militar (1964) e, paulatinamente, todo o movimento
estudantil seria desarticulado. Os estudantes do IPT integraram, como últimos,
a última diretoria da União Leopoldense de Estudantes Secundários. Para grande
susto dos professores do IPT, organizaria, com outros colegas, o “Ratio Club”,
nome pomposo para sociedade de estudantes escolhidos a dedo entre seus pares
para discutir temas gerais da vida política, filosófica e religiosa. Para a
tradição pietista de então, “ratio” era palavra mais do que suspeita.
Em 23 de outubro de 1960, aos 14
anos, Milton foi confirmado na Igreja Luterana de São Leopoldo. O Rev. W. Hilbk
deu-lhe para a caminhada na vida de fé a palavra “Buscai, em primeiro lugar, o
Seu reino e a Sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas”
(Mateus 6.33).
Em março de 1966, Milton iniciava seus estudos na Faculdade
de Teologia da IECLB. Estava com 19 anos. Na época, a Teologia ainda era
marcada por alguns nomes exponenciais. Havia, inclusive, colegas de semestres
mais avançados que declaravam pertença a escolas teológicas. Havia os
bultmannianos. Rudolf Bultmann já não mais governava. Democrático, permitia que
a seu lado surgissem “estrelas” bastante díspares como Herbert Braun, Ernst
Fuchs ou Ernst Käsemann. Sua marca registrada era o charuto. Os discípulos de
Bultmann eram bastante autônomos. Alguns estudantes sentiam-se atraídos pelo
“Chamado para a Liberdade”, de autoria de Käsemann, publicado em 1968 em quarta
edição. Ao lado dos bultmannianos existiam os barthianos. Sua marca registrada
era o cachimbo. Barth, mesmo tendo atacado violentamente o nazismo, não era
muito chegado à democracia em questões teológicas. A primeira geração de seus
discípulos não podia se afastar um centímetro sequer da KD, abreviatura então
usual no jargão teológico para a Kirchliche Dogmatik (Dogmática Eclesiástica)
do teólogo suíço. A maior parte de seus discípulos (Ernst Wolf, Hermann Diem,
Walter Kreck, Helmut Gollwitzer) até consentia em que o mestre pensasse por
eles, diziam as más línguas. Alguns dos colegas mais adiantados chegaram a
devorar a Summa Theologica de Barth. Na Europa, Barth e Bultmann digladiavam-se
como baleia e elefante, segundo dizia Barth. Lá e cá havia os que buscavam
intermediar entre Barth e Bultmann, sem sucesso. Para os que ingressavam em
1966, as brigas entre os dois “B”s já não interessavam, mesmo que fosse
interessante observar entre os professores de São Leopoldo alguns netos dos
velhos, quando iniciavam algum debate.
A geração de Milton não experimentou mais a formação de
escolas teológicas tão claramente delimitadas quanto o experimentara a geração
anterior. Não havia mais alternativas? Tinha medo do debate político? Da Europa
ainda vinham, através dos professores majoritariamente alemães, ecos de alguns
debates. Lá acontecia a “Teologia Política”, liderada pelo católico Johann
Baptist Metz. Havia grupo em torno de Trutz Rendtorff que se designava de
“Teologia do Cristianismo”, neoprotestantismo redivivo. Mas não se brigava
mais. Não se ouvia mais um “não!” ou um “sim!” categórico. Houve discussões em
torno da secularização (Gogarten); surgiu a “Teologia-da-Morte-de-Deus”
(Altizer e Hamilton); alguns se preocupavam com a cidade secularizada (Harvey
Cox, A cidade do homem). Discutia-se a possibilidade de ainda se fazer teologia
depois de Auschwitz (Dorothee Sölle), numa autocrítica muito salutar. Wolfhart
Pannenberg desenvolveu uma “Teologia da História” como alternativa à teologia
de Bultmann. Foi aceito por setores conservadores e rejeitado pelos barthianos.
Na Alemanha se desenvolvia, ainda, contra Barth e Bultmann, um movimento
designado de “Nenhum Outro Evangelho”. Era prenúncio de forte tendência
evangelical que logo se manifestaria na IECLB, sendo confundida com teologia
arminiana, trazida por pastores luteranos dos EUA para um Brasil no qual o
protestantismo de missão tendia sempre mais para uma teologia influenciada pela
extrema direita do senador norte-americano MacCarthy.
Estávamos, em São Leopoldo, nos
anos de 1966, 1967, 1968... em crise. Nossos sonhos tinham sido abortados em
1964. Só viríamos a votar para presidente com os nossos filhos. Na difícil
situação de 1964, um livro se nos tornou livro de cabeceira e nos fazia
refletir: Resistência e submissão, as cartas de Dietrich Bonhoeffer em seu
cativeiro. Seu tradutor, Ernst Bernhoeft, judeu luterano, fugira para o Brasil
durante o regime nacional-socialista, tornara-se professor na IECLB, mas não
fora aceito no ministério pastoral luterano. Depois, atuou, com muita bênção,
na Igreja Episcopal Anglicana do Brasil. Em 1966, em Genebra, um ex-professor
do Seminário Presbiteriano de Campinas tornara pública sua “Teologia da
Revolução”. Como ser cristão em situação revolucionária, de total efervescência
como a América Latina daqueles dias? Richard Shaull nos auxiliou com seu livro
Transformações profundas à luz de uma teologia evangélica, publicado pela
Editora Vozes, pois não havia editora protestante com suficiente coragem para
publicá-lo. Em 1966, caiu-nos nas mãos a sexta edição do livro que nos
determinaria, Teologia da esperança, de autoria de Jürgen Moltmann. A primeira
edição saíra em 1964. O livro de Jürgen Moltmann perguntava pelas conseqüências
da escatologia cristã para nosso fazer e viver teológico na América Latina.
Os estudantes da Faculdade de
Teologia éramos quase todos descendentes de imigrantes alemães. A IECLB era
“igreja de alemães”; mais de 70% de seus pastores ainda eram alemães. A América
Latina, o Brasil quase não participavam de nosso horizonte, se bem que –
verdade seja dita –, desde o choque da Segunda Guerra Mundial, o Brasil fosse
cada vez mais o horizonte da Igreja Luterana. Naqueles anos, a miséria da
maioria da população do “Terceiro Mundo” começou a ter significado teológico e
a encontrar expressão teológica. No protestantismo brasileiro, a Conferência do
Nordeste que falara de Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro foi um
marco. Nossa situação de então leva-nos a perguntar pelo que estava acontecendo
em termos de teologia na América Latina e que nos viria a influenciar após
nossa saída da Faculdade de Teologia.
Na história eclesiástica do
século XX, a eleição de João XXIII, a 28 de outubro de 1958, vai ser lembrada
como marco de singular importância, pois já em janeiro de 1959 este papa
convocou o Concílio Vaticano II. Podemos designar João XXIII de papa da
distensão. Suas encíclicas Mater et Magistra (1961) e Pacem in Terris (1963) e
seu falar da “Igreja dos Pobres” foram de fundamental importância para os
compromissos sociais e políticos do catolicismo na América Latina e não
deixaram de repercutir também no seio do protestantismo latino-americano.
As colocações feitas por João
XXIII em suas encíclicas e pronunciamentos coincidiram com uma época de
ebulição em toda a América Latina. Em 1º de janeiro de 1959, Fidel Castro pôs
fim ao regime de Fulgencio Batista, em Cuba. Desde aquele ano, as esquerdas
passaram a pensar que o movimento guerrilheiro tinha chances, que o marxismo representava
a única via para a liberdade e que o socialismo poderia ser concretizado na
América Latina. Camilo Torres o sacerdote que julgava não mais poder consagrar
os elementos da eucaristia, enquanto houvesse opressão, e Ernesto Che Guevara
eram modelos. Em 1966 morreu Camilo, em 1967 Che. A primeira fase da guerrilha
chegava ao fim: em 1969 morreu Carlos Marighella, no Brasil; em 1973 deu-se o
fim do movimento tupamaro, no Uruguai, e em 1978 terminou o movimento
montonero, na Argentina. Fidel, Camilo Torres, Che faziam parte de nosso saber
e estudar, mesmo que seus nomes só pudessem ser balbuciados em silêncio. Desde
1º de abril de 1964, o Brasil passou a viver sob regime militar, introduzindo,
em 1968, a doutrina da segurança nacional. As esperanças de muitos repousavam
no “modelo chileno”, introduzido por Salvador Allende no Chile (1970-1973) e,
depois, no Peru (Alvarado, 1968), na Argentina (1971ss, Lanusse e Perón) e na
Bolívia (1971, Torres).
No entanto, desde 1968,
anunciaram-se sucessivos golpes militares que introduziam “regimes de segurança
nacional” e que punham fim aos sonhos que julgavam ser possível a introdução do
socialismo por meios pacíficos. Em 1968, militares golpearam militares,
introduzindo esse novo tipo de regime no Brasil e exportando-o nos anos
seguintes: Bolívia (1971), Uruguai (1973), Chile (1973), Peru (1975) e
Argentina (1976).
Os únicos países em que a
situação ficou mais ou menos estável na América Latina foram o México e a
Venezuela. Ao México afluía a inteligência expulsa da América do Sul. Enquanto
os regimes de segurança nacional campeavam na América do Sul, desde 1976/77 a
inquietação tomava conta da América Central, culminando em 1979 com a vitória
do movimento sandinista, na Nicarágua. Na América do Sul, regimes militares
cansados e no fim de sua sabedoria permitiram o retorno da democracia, e, aos
poucos, explodiu toda a miséria de um Continente, ficando mais evidente do que
nunca. Contava-se já o ano de 1985.
Nesses anos conturbados, porém,
foi gestada teologia de maneira muito séria, buscando elementos para que o povo
de Deus pudesse sobreviver no deserto, sem perder as esperanças em relação ao
reino de Deus.
Desde 1965, alguns sacerdotes
católicos se reuniam em diversos países do continente: Gustavo Gutiérrez, Juan
Luis Segundo e Segundo Galilea, entre outros. Estes sacerdotes formularam suas
principais teses entre 1965 e 1970. Em Montevidéu desenvolveu-se, na mesma
época, o trabalho de ISAL (Igreja e Sociedade na América Latina). Aqui a teoria
da dependência e a sociologia da libertação foram pesquisadas. O grande
pensador teológico desse grupo foi Richard Shaull, professor do seminário
teológico da Igreja Presbiteriana do Brasil, em Campinas, e, desde 1962,
professor em Princeton, nos Estados Unidos.
Shaull reconheceu as tendências
revolucionárias na América Latina e fez a tentativa de interpretá-las à luz do
Evangelho. Daí resultou seu livro As transformações profundas à luz de uma
teologia evangélica, publicado pela Editora Vozes, em 1966. A violência e a
revolução são os temas a partir dos quais dirige perguntas à Igreja. Conhecida
tornou-se também a publicação de ISAL, Cristianismo y Sociedad. Ao lado de
Shaull devem ser mencionados como representantes da teologia da libertação no
âmbito evangélico pessoas como Emilio Castro, Julio de Santa Ana, José Míguez
Bonino e Rubem A. Alves. ISAL também serviu de lar para católicos como Hugo
Assmann e Pablo Richard, quando tiveram que ir para o exílio, desamparados por
suas igrejas. Ao contrário do grupo mencionado em primeiro lugar, os teólogos
evangélicos tiveram grandes dificuldades. Em sua maioria não eram aceitos por
suas denominações e tiveram que receber suporte do Conselho Mundial de Igrejas.
O grupo reunido em torno de Gutiérrez recebeu apoio de bispos.
Em nossos estudos, em São
Leopoldo, pouco do que estava sendo fermentado na América Latina movia nossos
estudos teológicos. No período de 1966 a 1970, tivemos muita exegese bíblica,
estudamos a História Eclesiástica, que não contemplava a América Latina,
debruçamo-nos sobre a Teologia Sistemática e a Ética, tivemos aulas de Teologia
Prática, tudo com grande empenho de nossos professores: Gerhard Barth, Joachim
Fischer, Lindolfo Weingärtner, Hans Strauss, Bertholdo Weber, Harm Alpers,
Gottfried Brakemeier, Nelson Kirst. Milton Schwantes teve, na época, em 1969, o
privilégio de estudar por um semestre em Buenos Aires, com Leskó, Obermüller,
Ruuth e Bahmann, onde pôde respirar ares distintos dos nossos.
Em 4 de julho de 1970, Milton concluiu seus estudos na
Faculdade de Teologia. Seu trabalho de conclusão da graduação comparou o
decreto sobre o ecumenismo do Vaticano II (1964) com as declarações sobre a
unidade emitidas na conferência do Conselho Mundial de Igrejas em Nova Delhi
(1961). Na época, a direção da IECLB preocupava-se com a formação de um quadro
docente teológico que viesse de encontro à “indigenização” da Igreja, como se
dizia na época. Dentro desse programa, em 1970, já haviam concluído seus
doutorados Lindolfo Weingärtner (Teologia Prática), Gottfried Brakemeier (Novo
Testamento) e Nelson Kirst (Antigo Testamento). Na Europa encontravam-se para
estudos de pós-graduação Hans Benno Asseburg, Ervino Schmidt e Walter Altmann.
Milton foi indicado para a pós-graduação em Heidelberg, junto ao professor Dr.
Hans Walter Wolff. Antes de partir, para iniciar seus estudos em 1971, contraiu
matrimônio com Elisabeth Klein. Os estudos foram possibilitados por bolsa da
Igreja Evangélica na Alemanha e do Fundo de Educação Teológica do Conselho
Mundial de Igrejas. Em Heidelberg, suas atenções centraram-se no direito dos
pobres. Foi esse também o tema de sua tese O direito dos pobres, na qual
estudou os conceitos utilizados para caracterizar os pobres na Lei e nos
Profetas.
Milton centrou suas atenções no
grupo dos socialmente fracos do antigo Israel. Verificou que os pobres não são
grupo periférico, mas que são praticamente idênticos ao povo de Deus. Deus é um
Deus que se volta aos que sofrem. A descoberta feita no estudo do Antigo
Testamento estava a apontar para o canto firme de novo período na história da
teologia, particularmente da América Latina. No prefácio de sua tese, Milton
escrevia: “Em sua obra decisiva para a nova reflexão teológica na América
Latina – Teología de la Liberación – Gutiérrez novamente apontou para a
importância das afirmações bíblicas – especialmente as vétero-testamentárias –
sobre a pobreza para um testemunho cristão, ‘do qual depende a autenticidade da
pregação da mensagem evangélica’.” Mal imaginava o jovem exegeta, com seus 28
anos, que em breve estaria a integrar a corrente daqueles que participariam da
releitura da mensagem bíblica no contexto brasileiro e latino-americano, vindo
a ser um de seus principais expoentes. O período entre 1970 e 1975 deve ser
visto como tempo da livre expansão da teologia da libertação. A época foi
caracterizada por diversos congressos. O primeiro deles ocorreu em El Escorial
(8-15 de julho de 1972). Os resultados desse congresso foram publicados na
revista Concilium (junho de 1974). Já em agosto de 1975, no México, por ocasião
de um segundo congresso, descobriu-se que existia uma ampla frente de teólogos
da libertação, em oposição à qual se podia constatar diversas posições, que, no
entanto, não formavam uma unidade. O desenvolvimento político no Continente não
permitiu novos encontros.
As primeiras publicações mais
importantes surgiram igualmente nos anos de 1970 a 1975. Juan Luis Segundo
publicou, em 1970, Da sociedade à teologia e, em 1975, Libertação da teologia.
Hugo Assmann escrevia, em 1971, Opressão – libertação: desafio para os cristãos,
em 1973, Teologia desde a práxis da libertação. Rubem Alves publicou, em 1969,
A theology of human hope. A obra saiu com esse título porque a editora não
concordou com o outro: Teologia da Libertação. José Míguez Bonino escreveu, em
1976, A fé em busca de eficácia.
Logo surgiu uma segunda geração
de autores, cujas obras devem ser vistas como conseqüência de Medellín. Entre
eles devem ser mencionados: Severino Croatto (Argentina), Ronaldo Muñoz
(Chile), Leonardo Boff (Brasil), Raúl Vidales (México). Especial destaque
merece nessa geração o argentino Enrique Dussel, cujas publicações surgiriam no
exílio mexicano. Doutor em Filosofia, Teologia e História, Dussel concentrou em
sua pessoa um largo espectro da teologia da libertação, tendo publicado em 1972,
em Barcelona, sua História da Igreja na América Latina, que veio a servir de
modelo para o projeto da Comissão de Estudos da História da Igreja na América
Latina (CEHILA), que procurou escrever história da Igreja desde a ótica dos
oprimidos. Ao lado de Dussel, devem ser mencionados os nomes de Eduardo
Hoornaert, José Oscar Beozzo e Riolando Azzi.
O desenvolvimento político da
América Latina não deixou de ter influências sobre a teologia da libertação. Em
1975, Leonardo Boff escreveu sua Teologia a partir do cativeiro. Gutiérrez
publicou, em 1977, Teologia desde o avesso da história e, em 1978, A força
histórica dos pobres. Nessas obras, começaram a surgir novos acentos. A
libertação foi vista como a luta pacienciosa, persistente do povo
latino-americano, em situação de perseguição e opressão. Enquanto algumas
pessoas pensavam que os estados de segurança nacional significavam um
retrocesso para a teologia da libertação, aconteceu o contrário: a teologia da
libertação se espalhou. O movimento popular e as comunidades eclesiais de base
assumiram os pensamentos da teologia da libertação, especialmente no Brasil,
mas também no México, El Salvador, Peru, Chile e Bolívia. Por isso, também é
compreensível que a teologia da libertação tenha vindo a se tornar mais e mais
reflexão sobre a práxis dos pobres, que se haviam organizado em comunidades e
movimentos. Nesse sentido, a teologia da libertação deixava mais e mais de ser
reflexão da práxis da inteligência para ser popular. Novos autores participaram
dessa fase: Clodovis Boff e João Batista Libânio (Brasil), Jon Sobrino (El
Salvador). Revistas se abriram à teologia da libertação: Revista Eclesiástica
Brasileira (REB) (Brasil) e PÁGINAS (Peru).
Depois, especialmente o trabalho
exegético passou a ser incrementado. O nome mais conhecido entre os exegetas da
teologia da libertação é o do carmelita Carlos Mesters. Merecem, no entanto,
ser mencionados os nomes de José Comblin, Jorge Pixley, Gilberto Gorgulho, Ana
Flora Anderson e Milton Schwantes. A experiência das comunidades eclesiais de
base perguntava pela Escritura.
A maior divulgação da teologia da
libertação, no entanto, aconteceu através de folhetos e de cópias de
conferências, pois os seus teólogos não dispunham de grandes bibliotecas nem
lhes era concedido o acesso às cátedras teológicas. Vasta foi também a
divulgação da teologia da libertação através do cântico.
As reações à teologia que se
desenvolveu nesse contexto foram muitas. As críticas chegaram a seu auge após a
publicação, em 1981, da coletânea de artigos do franciscano Leonardo Boff,
Igreja, carisma e poder.
Neste contexto, Milton Schwantes
retornou ao Brasil, em agosto de 1974, sendo indicado pelo Conselho Diretor da
IECLB para atuar como pastor em Cunha Porã/SC. Nessa atividade, foi pastor
querido por seus paroquianos. Pequeno exemplo de sua atividade no período foi a
publicação do caderno Sementes. A linguagem simples e vigorosa fala de cristãos
como sal da terra, do “meu povo” de Miquéias: o povo humilde e humilhado, as
camadas mais pobres da população, e apela para que a Igreja Luterana volte seus
olhos para os desvalidos. Com outros colegas, participou de elaboração de
material para a catequese e para o ensino confirmatório. Os pastores do então
Distrito Uruguai da IECLB tinham sua própria editora: A Publicadora Uruguai
(PU), e a série de suas publicações era designada de Cadernos do Povo. Ao lado
destas publicações, desde 1977 publicava também, regularmente, auxílios
homiléticos na série Proclamar Libertação. Milton participou destas atividades
até julho de 1978, quando veio o convite para ser professor na Faculdade de
Teologia da IECLB, em São Leopoldo, hoje Escola Superior de Teologia.
Milton passaria a ser professor
de Antigo Testamento. A teologia bíblica que o ocupava desde os tempos da
confecção da tese de doutorado, a experiência feita em Cunha Porã e os contatos
ecumênicos faziam-no acentuar a dimensão profética do ministério pastoral e do
ser do professor de Teologia Bíblica. Por isso, pediu para não residir no Morro
do Espelho, sede das instituições da IECLB, em São Leopoldo, mas no Bairro São
Borja, em casa simples. Queria fazer teologia no diálogo com os vizinhos, gente
simples. A solidariedade com pastores e pastoras que atuavam em condições
difíceis fê-lo optar pelo mesmo salário recebido por eles e elas, desistindo de
um abono concedido aos professores de Teologia. A época era a da colocação de
sinais. Sinal também foi colocado em sua preleção inaugural, expressão
utilizada para a conferência pública com a qual a instituição Faculdade de
Teologia apresentava seus novos professores. A conferência levou por título
“Natã precisa de Davi”. O título sugestivo gerou polêmica e muita reflexão.
Polêmicas foram também as preleções e seminários dirigidos pelo novo professor,
que logo soube atrair a atenção e o carinho dos estudantes. Em pouco tempo, o
exegeta ficaria conhecido além das fronteiras da pequena Igreja Luterana e
começaria a dar sua contribuição para o estudo da Bíblia que se intensificava
em todo o continente latino-americano.
Naquele final da década de 1970 e
ainda durante a década de 1980, pouco era o material exegético de qualidade que
poderia ser oferecido aos estudantes de Teologia. Em nível interno, Milton
tomou iniciativa importante, na qual continuou a exercitar o que fizera anteriormente
em Cunha Porã. Incentivou seus colegas a publicar manuscritos em forma de
cadernos de estudos. Muitas publicações que hoje são sucesso editorial, entre
as quais se encontram textos do próprio Milton, começaram a ser difundidas
nessa forma singela. Aos poucos, a publicação de textos foi se multiplicando.
Lembre-se aqui o pequeno comentário sobre Ageu, publicado no Comentário Bíblico
AT, em 1986, A família de Sara e Abraão, também de 1986, e sofrimento e
esperança no exílio, de 1987, surgido a partir de estudos realizados no Chile,
em meio a gente muito sofrida.
Em 1987, ocorreram também o
encerramento das atividades em São Leopoldo e a transferência para
Guarulhos/SP. Ali, Milton pretendia fazer a experiência de conjugar trabalho
pastoral na congregação luterana e atuar como professor. Desde 1988 seria
professor de Bíblia no que hoje é a Universidade Metodista de São Paulo. A casa
pastoral de Guarulhos não foi apenas residência do pastor e de sua esposa. Era
porta de acesso ao Brasil para um sem-número de pessoas que, vindas dos mais
diferentes rincões do planeta, queriam conhecer o trabalho de comunidades
eclesiais de base, de cristãos que eram movidos pela certeza de que em Jesus se
alcança a libertação e que Deus é um Deus que nos liberta de cativeiros
sociais, políticos, econômicos e espirituais. Milton tornava-se não apenas
embaixador de teologia luterana, mas embaixador de teologia da Igreja de Jesus
Cristo que vivia em cativeiro. Sua produção teológica desde então não pode mais
ser mencionada com o arrolamento de alguns poucos títulos. Aqui seria
necessário arrolar as centenas de títulos, de orientações de dissertações e
teses, conferências... e o espaço se torna pequeno. Certo é que, ao atingir os
60 anos de idade, sua produção o coloca entre as mais expressivas
personalidades do mundo acadêmico brasileiro e entre os grandes da exegese
internacional. Foi este o motivo que levou a Universidade de Marburgo
(Alemanha) a conceder-lhe, em 2002, o título acadêmico de Doutor Honoris Causa.
Seus muitos alunos há muito romperam os limites da pequena Igreja Luterana,
sendo encontrados nas mais diferentes denominações cristãs do Brasil e do
exterior.
A menção do ano da concessão do
título de Doutor Honoris Causa força-nos a refletir sobre situações de sofrimento
na vida do teólogo. O teólogo cristão só conhece a Deus a partir daquele lugar
em que Deus revelou o seu rosto: a cruz de Jesus de Nazaré, confessado como o
Cristo. Deus se revela sob o contrário do que é, também para o teólogo que tem
que experimentar, não raro, em sua vida cruz e sofrimento para poder
compreender o real significado da ressurreição e da esperança que brota da
manhã da Páscoa. O teólogo Milton teve que experimentar o fim de seu casamento
com Elisabeth. Foi situação de cruz e de sofrimento para ambos. Depois, Milton
pôde iniciar nova união com Rosi, que lhe trouxe três meninas, as quais
passaram a ser suas filhas. Mal esta nova fase em sua vida iniciara, e nova
aflição abateu-se sobre ele, seus familiares e amigos. Começaram a se acentuar
dificuldades com a visão, as quais, assim se verificaria, eram provocadas por
tumor benigno. Também tumores benignos causam danos irreparáveis. Fez-se
necessária cirurgia, longo período de recuperação, mantiveram-se lacunas na
memória. Houve a necessidade de longo período de adaptação e o aprendizado de
que, quando Deus nos preserva e nos sustenta por mãos amigas, precisamos
reaprender a dar passos pequenos e a dizer, novamente: “Por tua mão me guia,
Senhor Jesus...”, usando as palavras de hino luterano, cantado por diversas
gerações.
Quando se traça perfil biográfico
de um teólogo que aprendeu intelectual e vivencialmente o significado da
theologia crucis, o autor não pode terminar numa laudatio, mas tem o dever de
oferecer discurso correspondente à theologia crucis. A teologia que Milton
Schwantes até agora transmitiu e continua transmitindo trouxe muito movimento
abençoado para o contexto no qual vive, para suas comunidades cristãs e para
seu kairós. Milton concretizou teologia sobre a terra. Procurou tornar a
Verdade concreta. A Verdade sempre é concreta, como é concreta a Verdade que
liberta. Os explorados, exilados e oprimidos, para os quais foi formulada,
muito lhe devem. Pobres, afro-descendentes e mulheres que hoje andam de cabeça
erguida muito devem às teologias formuladas em contexto. Da história da Igreja,
no entanto, se aprende que as teologias contextuais estão limitadas a tempo e a
espaço. Suas possibilidades também são limitadas. Podem ainda existir
radicalizações e influências sobre outros, mas sempre surge o instante da
estagnação. Há teologias que ainda conseguem ver seus filhos e netos,
raríssimas os bisnetos. Gustavo Gutiérrez soube, por isso, situar a teologia da
libertação na teologia da vida. E aqui é importante verificar que houve mudanças
no fazer teologia. Elas merecem nossa reflexão.
A geração de teólogos e teólogas
que comungou com Milton Schwantes leitura e interpretação semelhantes do
Evangelho fez a experiência de que, muitas vezes, as coisas acontecem de forma
distinta do que aguardavam.
Às vésperas da conclusão de seus
estudos de graduação em Teologia, em 1968, o cheiro de revolução estava no ar.
Havia protestos contra a Guerra do Vietnã (Era um garoto que, como eu, amava os
Beatles e os Rolling Stones...), contra a sociedade de consumo capitalista e
contra a ditadura do socialismo real dos burocratas. Nem o Oriente nem o
Ocidente gostavam destes protestos, pois eles “solapavam” a ordem estabelecida.
Perguntávamos como mudar o status quo lá e cá. As bases, os fundamentos da sociedade
deveriam ser alterados. A palavra “revolução” significava muitas coisas e era
utilizada para muitas finalidades: revolução socialista, revolução democrática,
revolução sexual, revolução cultural, revolução de costumes... Para amainar o
“ímpeto revolucionário” alguns se valiam da palavra “religião” e contrapunham a
religião à revolução: jovens crentes não participam de demonstrações!
Nesse período, a leitura
teológica da sociedade se alterou, profundamente. Lendo Harvey Cox, dizíamos
que a sociedade se secularizava (não víamos que no Brasil se tornava cada vez
mais religiosa!); interpretando Bonhoeffer, considerávamos a sociedade
sem-religião, quando já havia muitos que a passavam a perceber multirreligiosa.
Enquanto alguns ainda buscavam diálogo com ateus (Moltmann, Jüngel, Machovec,
Sölle), Hans Küng passou a andar de braços dados com as grandes religiões e
afirmou que o diálogo inter-religioso era uma das mais importantes tarefas
teológicas (!) do mundo moderno. Numa leitura similar que permanece até hoje,
algumas denominações cristãs, comunidades e teólogos julgam este diálogo tão
importante que ateus, pessoas sem religião e tais que se distanciam da Igreja
não mais importam. É certo que a religião se tornou questão de foro íntimo.
Sobre qualquer forma de religião e de sentimento religioso se encontra oferta
nas livrarias esotéricas. Quando teólogos só buscam mais o diálogo
inter-religioso, seu horizonte de diálogo fica bastante restrito. Será que
cristãos são apenas “pessoas religiosas”? Que interesse político há por trás da
intenção de que pessoas religiosas dialoguem consigo mesmas e deixem o restante
do mundo em paz?
Blumhardt e Bonhoeffer nos
lembram que Jesus não trouxe uma nova forma de religião, mas “vida nova”.
Parece-me que o Evangelho da vida se dirige ao mundo da religião e ao mundo
não-religioso, pois a vida do mundo está no centro da fé cristã (Jo 1.4).
Os reformadores promoviam longos
debates sobre a “verdadeira” e a “falsa” Igreja. Discutiam até chegar a
compromissos ou a se separarem. O “diálogo” busca “caminhadas”, nada sabe de um
alvo. Quando o diálogo chega a um resultado, está no fim, acabou. Os que
dialogam se aproximam, aprendem a conviver, mas não se convencem.
Com isso não estou a dizer que o
diálogo inter-religioso não seja importante. Ele nos ajuda a conhecer o outro e
a nós mesmos. Pode diminuir preconceitos, mas não leva o outro a se tornar
cristão; no máximo estabiliza o status quo. No fim, tudo “acaba em pizza”, em
“diversidade reconciliada”. Assume-se a indiferença tolerante da
pós-modernidade. A teologia reduzida a “diálogo inter-religioso” é programa
conservador e mais um placebo.
Diálogo só faz sentido onde é
indispensável. Diálogo dos “homens de boa vontade” é perda de tempo. Diálogo é
indispensável em relação aos extremistas da religião. Quem está dialogando com
os fundamentalistas islâmicos? Quem está dialogando com os fundamentalistas
cristãos? Quem tem que dialogar com fundamentalistas islâmicos é o Islã
pacífico. Dialogar com os guerreiros de Deus que cercam Bush é tarefa de
teólogos cristãos. Mas ambos têm que dialogar por causa dos perigos que cercam
o mundo, e aí o diálogo se transforma em debate que busca a Verdade...
Na década de 60 buscou-se
solucionar a questão da identidade através do protesto: a razão da existência
era o protesto; na década seguinte, a questão era a “curtição”. Faziam-se shows
para “curtir”. Tudo era feito para a recreação, tinha “finalidade recreativa”,
narcisismo puro. Por isso, se passou a buscar a identidade do ser humano em seu
“interior espiritual”. A conseqüência foi a despolitização: pão e circo.
Na Europa, perdeu-se o interesse
pela América Latina e pela África, “o continente morto”. Na América Latina,
cresceram o esoterismo e a “auto-ajuda”. Nesses círculos, a “teologia política”
passou a ser considerada desprezível. Não foi por acaso que, no meio católico
europeu, psicólogos passaram a ter crescente importância. Estudavam mitos e
lendas. A “estrutura profunda da alma” passou a ser estudada no exemplo de
Chapeuzinho Vermelho ou de Moisés. Deixou-se de lado o contexto social e
político da narrativa. No mundo protestante, experimentou-se um renascimento de
Schleiermacher. Buscou-se, especialmente na Teologia Prática, a “excitação de
disposições mentais piedosas”. A revolução não interessava mais, mas a
religião. Na religião se deveria sentir “o sabor do infinito”, que antes os
fumantes sentiam ao fumar Hollywood com filtro ou Minister. O discurso “que faz
bem” substituiu, nos púlpitos, a teologia profética com suas provocações
dolorosas. A teologia deixava de ser sal da terra que machucava a ferida para
se tornar chantili de um show de bolo saboroso. Nada exigia, nada provocava.
Seria bom discutir aqui o que
aconteceu com os seminários teológicos, mas isso é outra conversa.
No centro da fé cristã está a
missão (do Reino) de Deus no mundo. A mensagem da Igreja é o Evangelho da vida.
Teologia é teologia pública e deve dirigir-se a todos.
Milton Schwantes viveu e
experimentou tudo isso. Rogo que continue no debate, ad multos anos.
Fonte: DREHER, Carlos A. org. Profecia e Esperança: Um tribute a Milton Schwantes. São Leopoldo/RS:
Oikos, 2006. p.11-23.